Em
"Casablanca", a chegada ao local do título, localizado em
Marrocos, significa acima de tudo um ponto de passagem para a
liberdade, para uma breve estadia de forma a apanhar o avião em
direcção a Lisboa e assim essas pessoas poderem viajar em direcção
aos Estados Unidos da América. Estávamos em plena II Guerra
Mundial, a Europa estava a ferro e fogo, enquanto a Alemanha Nazi e
as forças do Eixo pareciam avançar de forma implacável. No
entanto, como é anunciado pelo narrador, nem todos conseguem sair de
Casablanca. Alguns elementos ficam presos no território, arriscando
a permanecer no mesmo até ao fim dos seus dias. Quem também é
capaz de nos prender vezes sem conta a este território é
"Casablanca", a obra-prima de Michael Curtiz, um cineasta
algo subvalorizado, que conta na sua carreira com filmes com “Captain
Blood” (1935), “The Adventures of Robin Hood” (1938), “Angels
With Dirty Faces” (1938), “Yankee Doodle Dandy” (1942),
“Mildred Pierce” (1945), entre muitos outros, que podem não ter
o mesmo mediatismo do memorável filme protagonizado por Humphrey
Bogart e Ingrid Bergman, mas não deixam de revelar um cineasta muito
acima da média. Em “Casablanca” tudo se parece ter conjugado a
favor do filme, até os seus erros, ao longo de uma obra recheada de
cenas memoráveis, falas inesquecíveis, magníficas interpretações,
uma realização segura de Michael Curtiz e um eficaz trabalho de
fotografia, onde os seus ideais de propaganda facilmente são
esquecidos perante o drama romântico apresentado. Sim, "Casablanca",
em parte, também foi desenvolvido com objectivos propagandísticos
anti-alemães e para aliciar os norte-americanos a aderirem com maior
facilidade a esta causa, mas também convém salientar que é muito
mais fácil "engolir" propaganda anti-nazi do que o
contrário. Tendo como pano de fundo o cenário de Casablanca,
durante a II Guerra Mundial, na época um protectorado francês, a
história acompanha o norte-americano Rick Blaine (Humphrey Bogart),
um indivíduo aparentemente cínico e frio, que procura acima de tudo
mostrar a sua independência política, salientando que quando
questionado sobre a sua nacionalidade comenta “I’m a
drunkard”, embora aos poucos este demonstre que esconde um
lado mais humano. Rick é o dono do famoso Rick's Café Américain
(que deu título a este blogue), um local que todos parecem
frequentar, quer sejam alemães, franceses, norte-americanos,
marroquinos, naquela que é a mescla de culturas e povos no
território de Casablanca apresentado pelo filme.
Este bar de Rick Blane conta entre
os seus clientes com o Capitão Louis Renault (Claude Rains), um
francês sem grandes escrúpulos, que cumpre ordens alemãs devido a
colaborar para a França de Vichy, ou seja, a França Ocupada. Após
apresentar o território de Casablanca e o contexto histórico ao espectador, a
narrativa logo avança para uma intriga relacionada com dois
passaportes que se encontram na posse do criminoso Ugarte (Peter
Lorre, um secundário de luxo), um aldrabão de primeira que pretende
vender os mesmos a dois clientes importantes. Perante a suspeita de
que está a ser seguido, este deixa os passaportes com Rick, que
apenas se comprometeu a guardar os mesmos até ao final da noite. Com
Ugarte preso e posteriormente assassinado, Rick fica com os
passaportes sem que ninguém saiba, não tendo consciência que estes
se destinam ao revolucionário checoslovaco Victor Laszlo (Paul Henreid) e... Ilsa
Lund (Ingrid Bergman). Ilsa é uma das causas para a frieza de Rick
Blaine para com as mulheres e promete voltar a alterar a sua monótona
vida. A chegada de Ilsa ao Rick's Café Américain é um dos vários
momentos memoráveis do filme, sobretudo quando a personagem interpretada por Ingrid Bergman pede a Sam
(Dooley Wilson) para cantar "As Time Goes By", a música
desta e de Rick, algo que este reluta em fazer, mas logo acede,
despertando a ira de Rick, pelo menos até este ver Ilsa, com os
close-ups nos rostos a exporem o impacto desta cena para o antigo
casal. Cala-se o “You must remember this. A kiss is just a kiss, a
sigh is just a sigh. The fundamental things apply. As time goes by”
e entra em cena uma troca de olhares intensa entre ambos. Longos anos
se passaram desde que Ilsa abandonou Rick sem uma explicação em
Paris, mas os sentimentos entre os dois claramente não mudaram
muito. Rick logo muda o discurso, bebe com o casal, uma raridade
vinda de alguém que não bebe com clientes, com o seu coração a
balançar bem forte, apesar da aparente frieza. Com os passaportes na
mão, Rick terá de decidir entre manter a neutralidade, ajudar
Victor e Ilsa, procurar reconquistar o seu antigo amor ou aceder aos
desejos do Major Strasser (Conrad Veidt), um dos líderes nazis no
território e entregar Laszlo. Não falta intriga política, romance,
traições, acção, melancolia, a "Casablanca", com o
argumento a explorar o contexto histórico para apresentar um romance
magnificamente elaborado que resistiu ao tempo e continua a
conquistar grande parte dos cinéfilos (tal como em qualquer filme, é
impossível agradar a todos).
Se a objectividade na escrita de uma
crítica é algo impossível de acontecer, ou não fosse o seu autor
um ser humano racional, marcado por gostos e emoções, então
escrever um texto de pendor crítico sobre o nosso filme preferido
torna-se ainda mais complicado, com “Casablanca” a ser
provavelmente a obra que mais marcou a minha vida cinéfila. Desde o
encontro entre Ilsa e Rick, ao momento em que este se excede no
consumo de álcool a pensar na mesma, passando pela arrepiante cena
no Rick's onde os elementos da resistência cantam com a sua alma a Marselhesa, até
aos momentos finais recheados de tensão, “Casablanca” não poupa
nos elementos marcantes e apaixonantes, onde tudo parece dar certo. A
cena onde os elementos da Resistência cantam A Marselhesa é
arrepiante, mas não é a única a deixar marca. Ver Sam a tocar "As
Time Goes By" é simplesmente encantador, arrasador e memorável.
Ver Ilsa e Rick em Paris é doce, terno e igualmente de partir o
coração. Ver Rick e Ilsa a trocarem diálogos emocionados em Casablanca é
simplesmente arrasador do ponto de vista emocional. Ver Rick a
apontar a pistola ao Capitão Renault é emocionante, expondo
paradigmaticamente o verdadeiro carácter deste complexo personagem,
capaz de sacrificar o amor por uma causa. Muitas outras cenas
poderiam ser colocadas também em destaque, bem como diálogos, com o
filme realizado por Michael Curtiz a não poupar nas falas que ficam
na memória. "Casablanca" é um exemplo paradigmático de
um filme onde tudo parece dar certo, sendo capaz de chegar aos
espectadores como poucas obras cinematográficas o conseguem. É
verdade que existem muitos filmes tecnicamente e narrativamente
superiores, mas poucos tiveram a capacidade de "Casablanca"
em conquistar, arrebatar e emocionar o espectador e é aqui que
reside um dos factores de força do filme realizado por Michael
Curtiz. Constituído por um belíssimo trabalho de fotografia do qual
sobressai a utilização do chiaroscuro (bem como uma utilização sublime dos close-ups), um domínio notório da mise-en-scène, um conjunto de cenários que se tornaram míticos (veja-se
o café de Rick), "Casablanca" junta a essa atenção ao
pormenor uma história soberba da qual sobressai a história de Rick
Blaine e Ilsa Lund.
Rick e Ilsa podem guardar as
felizes recordações de "Casablanca", mas o espectador
ficará com as gratas recordações de ter conhecido estes dois
personagens. Bogie tem aqui um personagem dicotómico dos gangsters
que até então interpretara em "The Petrified Forest",
“Dead End”, "High Sierra", "The Roaring Twenties"
ou do detective Sam Spade de "The Maltese Falcon". Não que
este não tenha interpretado alguns personagens distintos (veja-se o
peculiar Dr. Maurice Xavier em “The Return of Doctor X”), mas
poucos lhe deram o reconhecimento de Rick Blaine e isso é facilmente
explicado não só pela interpretação de Bogie, mas também pela
química magnífica com Ingrid Bergman. Bogie dá ao personagem tudo
aquilo que ele precisa: cinismo, um ar meio melancólico e soturno,
mas também uma enorme credibilidade, fazendo com que facilmente
acreditamos que este claramente sofre as convulsões sentimentais
quando revê Ilsa e recorda o passado. Dono de um clube nocturno
conhecido por ser frequentado por aliados e forças do eixo, onde é
possível jogar à vontade, divertir-se e beber, Rick é o cínico
que não bebe com clientes, não dá fiado, procura ser imparcial e
politicamente correcto em todas as questões, que aos poucos cede à
causa aliada, mas acima de tudo a Ilsa. Claro que existe em todo este
personagem uma ideologia representativa de que se este se consegue
converter à causa aliada, também todos os norte-americanos o
conseguem, mas já lá vamos a essa parte. Antes de abordarmos
questões relacionadas com a ideologia no filme, vale a pena
salientar que todo este desempenho de Humphrey Bogart não seria o
mesmo sem a companhia de Ingrid Bergman. A estrela sueca é daquelas
actrizes que surgem praticamente como sinónimo de talento e tem em
Ilsa uma personagem claramente relevante e que nos marca. Esta é a
mulher que conquistou e devastou o coração de Rick, uma personagem
doce, aparentemente frágil, que mantém uma enorme lealdade para com
Victor Lazlo e a causa que este defende. Ao longo do filme percebemos
que esta personagem é bem mais complexa, enquanto Bogie e Bergman
protagonizam alguns momentos memoráveis, que vão desde o mais
romântico (as cenas em flashback de Paris) ao tenso (quando Ilsa
pretende a todo o custo os passaportes). Claro está que estes não
são os únicos nomes que se destacam e esta é uma das forças de
"Casablanca". Não falta Peter "merece mais do que
papéis secundários" Lorre como um indivíduo de índole
duvidosa, Claude Rains como o traiçoeiro capitão Renault que até
acaba por iniciar "uma bela amizade" com Rick, Conrad Veidt
(estrela de vários clássicos do chamado Expressionismo Alemão)
como um nazi frio e perigoso e já agora Paul Henreid como o
imponente líder da resistência Victor Laszlo.
A juntar aos elementos já citados, vale a pena salientar a magnífica banda sonora do filme, da qual sobressai o tema "As Time Goes By", propiciador de alguns momentos memoráveis, aquecendo a alma e o coração dos espectadores, enquanto desperta sentimentos antigos em Rick e Ilsa. No entanto, vale a pena mudar a corda do texto do romance para outras temáticas, pois este já está a ficar longo e não queremos que ninguém abandone a leitura por tédio. Se o romance sobressai, vale a pena salientar a mensagem política do filme, que aparece expressa não só directamente nas temáticas do filme e tem como ponto alto o arrepiante momento em que se canta "A Marselhesa" perante um Rick's Café Américaine recheado de alemães, mas também indirectamente, através de Rick Blaine. Rick é o sujeito impassível, neutro, que não quer problemas. Este é os Estados
Unidos da América antes de decidirem participar na II Guerra
Mundial. Se os EUA foram acossados no seu orgulho com o Ataque a
Pearl Harbor, já Rick tem aquele pequeno "pormaior" de ter
de decidir não só o futuro de Lazlo, mas também da eterna amada
Ilsa. É verdade que este já não mantém uma relação com Ilsa e a
bela mulher quebrou o seu coração, mas estes ainda têm as memórias
Paris, enquanto Rick tem os seus ideais de justiça, que passam por
uma vitória da liberdade. Embora a propaganda seja uma das
tentativas claras de "Casablanca" (Hollywood torna-se muito
mais interventiva na conquista dos corações e das mentes a partir
da II Guerra Mundial e quando os Estados totalitários europeus
começam a fechar-se às suas obras), também vale a pena salientar
que é completamente redutor e simplista considerar "Casablanca"
um mero filme de propaganda. No seu fulcro está o romance, a
história de Ilsa e Rick, ao mesmo tempo que coloca Casablanca como
um território praticamente neutral e Lisboa como ponto de passagem
para os EUA. Claro que a própria associação dos EUA a liberdade
encerra um conceito algo propagandístico, embora deva ser matizado
pelo contexto histórico, social e económico da época, a juntar que
o filme é norte-americano e faz claramente mais sentido os
personagens quererem viajar para os EUA em busca de liberdade do que
para a Sibéria ou para umas férias nos Gulag. O que surpreende em
"Casablanca" é como todas estas temáticas poderiam
descambar em algo insonso, mas tudo resulta e cria uma enorme
empatia, sendo capaz de nos emocionar e marcar, com Michael Curtiz a
realizar uma obra digna de toda a atenção que tem conhecido ao
longo dos anos.
Michael Curtiz tem nesta obra
cinematográfica baseada na peça (na época por lançar) "Everybody
Comes to Rick's" aquele que é um dos pontos altos da sua
carreira. Realizador com um conjunto de obras acima da média, poucas
foram aquelas que continuam a gozar do estatuto de "Casablanca",
um filme recheado de momentos memoráveis que perduram facilmente na
memória, tais como aqueles que foram citados ao longo do texto, tão
capazes de gerar amores, paixões e também algumas reticências. As
paixões não se explicam, mas sentem-se. Desde o primeiro dia que
contactei com "Casablanca" que este se tornou "O
FILME" da minha vida. Já vão mais de doze anos e ver
"Casablanca" tornou-se quase um ritual e nunca uma
obrigação. Ilsa, Rick, Sam, Victor Laszlo, Ugarte, Louis Renaut,
mais do que meros personagens, tornaram-se figuras familiares cujos
diálogos foram praticamente decorados e redescobertos a cada
visualização.Tal como as pessoas, os filmes não são perfeitos.
Nem por isso nos deixamos de relacionar melhor com umas do que com
outras. "Casablanca" é daqueles filmes cujos defeitos não
chegam para lhe tirar o seu valor, a paixão e emoção que
transmite, os seus momentos arrebatadores e inesquecíveis, algo que
leva a construir uma relação única com quem vê esta obra-prima.
Existem filmes que com o tempo vão crescendo dentro de mim e outros
que me fazem sentir o amargo sabor de já não gostar tanto deles
como na primeira visualização. "Casablanca" é sempre uma
doce descoberta a cada nova visualização, um filme que apaixona,
comove e emociona, no qual a cidade de Paris de Rick e Ilsa se
transforma no local de todos os sonhos e desilusões, Casablanca a
cidade da qual não queremos sair e perder a companhia de Rick e
Ilsa, numa obra arrebatadora e simplesmente apaixonante.
Classificação: 5 (em 5).
Realizador: Michael Curtiz.
Argumento: Joan Alison.
Elenco: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Peter Lorre, Conrad Veidt, Paul Henreid, Claude Rains, Sydney Greenstreet.
Elenco: Humphrey Bogart, Ingrid Bergman, Peter Lorre, Conrad Veidt, Paul Henreid, Claude Rains, Sydney Greenstreet.
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